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IRMÃO DAS COISAS FUGIDIAS: CONEXÕES ENTRE FOTÓGRAFOS E POETAS

Assim como um poema, uma fotografia é fascinante, enigmática, e deixa diversas entrelinhas para serem completadas pelo nosso imaginário. Em seu livro ESTÉTICA DA FOTOGRAFIA — PERDA E PERMANÊNCIA, FRANÇOIS SOULAGES compara o ofício de um fotógrafo ao de um poeta.

 

O pesquisador também usa a palavra vestígio para descrever o conjunto de variáveis que envolvem uma imagem desde a sua formação até ser revisitada posteriormente. Fatores como a intenção do fotógrafo, o que há dele na imagem, o material com o qual se fotografou, o evento que foi fotografado e, principalmente, a sua ligação com o tempo.

 

“Por um lado, quer-se acreditar que, graças a ela [a foto], o objeto, o sujeito, o ato, o passado, o instante, etc., vão ser reencontrados; por outro, deve-se saber que ela nunca os dá novamente: ao contrário, ela é a prova de sua perda e de seu mistério; no máximo, ela os metamorfoseia. Essa ilusão de reencontros e essa imposição da perda alimentam a prática fotográfica — o fato de as fazer e o de as ver. ” (François Soulages)

 

A relação entre poetas e fotógrafos fica ainda mais estreita quando, partindo das reflexões sobre fotografia apresentadas, as conectamos com versos de algumas obras nacionais em que eu lírico descreve o seu ofício.

 

“Eu canto porque o instante existe
E a minha vida está completa
Não sou alegre nem sou triste
Sou poeta

 

Irmão das coisas fugidias
Não sinto gozo nem tormento
Atravesso noites e dias
No vento
(…)”

 

Das estrofes inicias do poema MOTIVO escrito por CECÍLIA MEIRELES podemos extrair algumas observações interessantes que relacionam os dois ofícios.

 

A autora descreve o poeta como alguém que tem o tempo e os acontecimentos como matérias fundamentais para as suas criações. Como alguém que é próximo da transitoriedade da vida, se reconhece também como de passagem por ela, e em constante transformação.

 

Ou seja, como escrito no trecho destacado de FRANÇOIS SOULAGES, o poeta, assim como o fotógrafo, guarda impressões da vida movido pela ilusão do reencontro com algo que inevitavelmente irá se modificar. A comparação fica ainda mais perceptiva quando observamos que em um poema que descreve o que é ser poeta, dois conceitos que norteiam a fotografia estão presentes: instante e passagem do tempo.

 

Já em AS VITRINES, de CHICO BUARQUE, o eu lírico descreve diversos acontecimentos que se sucedem tão rapidamente que formam verdadeiras fotografias na mente do leitor/ouvinte.

 

“(…)
Os letreiros a te colorir
Embaraçam a minha visão
Eu te vi suspirar de aflição
E sair da sessão, frouxa de rir

Já te vejo brincando, gostando de ser
Tua sombra a se multiplicar
Nos teus olhos também posso ver
As vitrines te vendo passar
(…)”

 

Nota-se, ao longo da canção, que o eu lírico é um observador, alguém que até ali registrou momentos da vida de uma pessoa em forma de descrições visuais e subjetivas. E ele revela, nos versos finais, a sua identificação com o ofício de um poeta.

 

“(…)
Na galeria, cada clarão
É como um dia depois de outro dia
Abrindo um salão
Passas em exposição
Passas sem ver teu vigia
Catando a poesia
Que entornas no chão”

 

Além das questões relativas ao registro de instantes e de suas metamorfoses, o poema é composto por diversos elementos que nos remetem à fotografia. Tais como menções diretas ou indiretas a luzes, cores, sombras, reflexos e visão.

 

O que é feito pelo eu lírico da canção poderia ser feito de forma similar tanto por um poeta, quanto por um fotógrafo. Ambos são observadores que transformam vivências em obras. Nos dois casos, a realidade sempre passa por aspectos, conscientes ou não, dos indivíduos que a retratam.

 

“Quem ainda poderia pensar que a foto é uma prova? Uma foto é um vestígio, é por isso que é poética. O fotógrafo é aquele que deve deixar, ou melhor, que deve criar vestígios de sua passagem e da passagem dos fenômenos, vestígios de seu encontro — fotográfico — com os fenômenos. É por isso que é um artista.”  (François Soulages)

 

 

Escrito por Lili Figueiredo.

Foto: Mabbom Santos 

 

Referências: 

SOULAGES, François. Estética da Fotografia – Perda e Permanência. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2010.

BUARQUE, Chico. As Vitrines. In: Almanaque. 1981.

MEIRELES, Cecília. Motivo. In: Viagem. 1939.

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